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O Estado Xamânico de Consciência


O xamã opera na realidade incomum apenas em pequena porção do seu tempo e, ainda assim, só quando isso é necessário para realizar tarefas xamânicas, porque o xamanismo é uma atividade de tempo parcial. Entre os Jivaro, os Conibo, os Esquimós e a maioria de outros grupos primitivos, o mestre xamã costuma ser um participante ativo nas questões econômicas, sociais e mesmo políticas da comunidade. Quase sempre é excelente caçador ou jardineiro, artífice e artista, pensador e membro responsável da família e da comunidade. Na verdade, a capacidade do mestre xamã de operar com sucesso em duas realidades diferentes é vista como prova de poder. Ele segue os preceitos do xamanismo quando empenhado nesse tipo de atividade e segue os preceitos da realidade comum quando não está envolvido em trabalhos xamânicos.

O xamã se movimenta deliberadamente de cá para lá entre as duas realidades, o que é feito com sérias intenções. Seja qual for a realidade, o xamã pensa e age segundo os padrões próprios de cada uma delas e tem como objetivo o domínio tanto da atividade comum como da incomum. Só aquele que domina com sucesso suas ações, em ambos os casos, é um mestre xamã. As duas realidades pessoais do xamã, a incomum e a comum, têm seus estados correspondentes de consciência. Cada realidade pode ser tratada com êxito apenas quando a pessoa está no estado de consciência a ela correspondente. Assim, se a pessoa está atravessando uma rua de grande trânsito, o estado de consciência é diferente do que deve ser empregado para entrar nos mundos profundos xamânicos. Um mestre xamã está inteiramente cônscio da percepção apropriada para cada situação que deve enfrentar e entra nesse estado de consciência quando necessário. A percepção de duas realidades é típica no xamanismo, mesmo que alguns filósofos ocidentais de gabinete há muito venham negando a legitimidade da reivindicação de uma divisão dual como essa entre o mundo comum e um mundo oculto entre os povos primitivos, supondo, ao que parece, que os primitivos não são capazes de distinguir entre os dois. Tal como expliquei antes, os Jivaro não só fazem conscientemente essa divisão como também atribuem uma importância muito maior ao mundo incomum. Concordo com Åke Hultkrantz quando ele diz:

- Se tais povos [primitivos] não fazem tal dicotomia de forma consciente — o que às vezes fazem —, na verdade ordenam inconscientemente suas cognições, de acordo com esse modelo. Uma prova disso é o transe xamânico. O mundo do êxtase é o mundo dos poderes e das intervenções sobrenaturais, por isso o xamã mergulha nele. Ele existe em dois mundos: fora do transe, vive a rotina da tribo, dentro do transe é parte de um mundo sobrenatural, compartilhando com os espíritos algumas das potencialidades deles: a capacidade de voar, de se transformar, de se tornar um com seu espírito auxiliar, e assim por diante.


A ênfase que aqui emprego, ao fazer a distinção entre as experiências que se tem em EXC e em ECC, ou a que Castañeda faz entre a realidade incomum e a realidade comum, não é uma distinção que possa ser comumente notada nas conversações entre xamãs, mesmo com ocidentais. Assim, se o leitor ouvisse a conversa de um Jivaro, poderia ouvir relatos de experiências e ações que lhe pareceriam, por ser um ocidental, claramente abusadas ou impossíveis. Por exemplo, ele poderia falar-lhe sobre achar uma árvore grande à distância, por meio do poder xamânico ou que ele viu um arco-íris às avessas dentro do peito de um vizinho. Sem tomar fôlego pode continuar, dizendo que está fazendo uma nova zarabatana ou que esteve caçando na manhã interior.

Como os filósofos ocidentais diriam, o problema não é o fato de os povos primitivos, como os Jivaro, exibirem mente primitiva "pré-lógica". O problema é que o ocidental é simplesmente destituído de sofisticação, do ponto de vista xamânico. Para seus companheiros de tribo, o Jivaro não precisa especificar em que estado de consciência estava quando de determinada experiência. Eles sabem de imediato, porque já aprenderam quais os tipos de experiências que podem ocorrer em EXC e quais deles ocorrem em ECC. Só os de fora, os ocidentais, carecem desse dado.

A sofisticação dos Jivaro está longe de ser única, na verdade, essa sofisticação provavelmente existe em quase todas as culturas xamânicas. Infelizmente, os observadores ocidentais, carecendo de vastas experiências com o estado alterado de consciência, muitas vezes deixam inteiramente de indagar em que estado se achavam seus informantes aborígenes quando tiveram suas experiências "impossíveis". Tal como observa, com propriedade, o antropólogo australiano W. E. H. Stanner: - Ao deparar com esse tipo de coisa pela primeira vez, é inevitavelmente fácil de os europeus passarem a supor que um “misticismo" como esse governa todo o pensamento aborígene. Mas não é assim. O pensamento "lógico" e a conduta "racional" acham-se tão presentes na vida aborígene como nos níveis mais simples da vida européia... E se uma pessoa quiser ver uma demonstração realmente brilhante de pensamento dedutivo, basta que ela veja [um aborígene] rastreando um canguru ferido e consiga fazer com que ele diga por que interpreta os sinais dados de uma certa maneira.


Em outras palavras, as limitações não estão nos povos primitivos, mas na forma como nós entendemos a natureza de dupla ligação das suas experiências e o respeito que eles lhe devotam. Como a nossa cultura ocidental não é xamânica, ao ensinar o xamanismo, faz-se necessário deixar clara a distinção entre o EXC e o ECC ou entre a realidade incomum e a realidade comum, como faz Castañeda. Quando e se, o leitor se tornar um xamã, e caso haja outros xamãs com os quais possa conversar, descobrirá que, tal como acontece a um Jivaro ou a um aborígene australiano, não lhe será necessário especificar em que estado de consciência se achava quando teve uma experiência especial. Os que o ouvem, se forem pessoas de conhecimento, saberão distinguir naturalmente. O estado alterado de consciência, componente do EXC, inclui vários graus de transe, que vão desde o essencialmente leve (como os de muitos índios norte-americanos xamãs) ao muito profundo (como no caso dos lapões), onde o xamã pode parecer que está temporariamente em coma. Na realidade, essa escala completa é relatada pelos xamãs siberianos. Tal como Hultkrantz evidencia: "Pronunciamentos que pretendem mostrar que o transe xamânico tem invariavelmente a mesma profundidade são, portanto,

enganosos." Da mesma forma, Eliade observa: "Entre os Ugros, o êxtase xamânico não é bem um transe e sim um 'estado de inspiração'; o xamã vê e ouve espíritos; é levado para 'fora de si próprio' porque está viajando em êxtase por regiões distantes, mas não está inconsciente. Trata-se de um visionário, um inspirado. Contudo, a experiência básica é extática, e o meio principal para obtê-la é, como em outras áreas, a música mágicoreligiosa."

É claro que um certo grau de alteração da consciência se faz necessário à prática xamânica. Os observadores ocidentais não muito atentos quase sempre não conseguem se conscientizar de que o xamã entrou em transe leve, exatamente por serem observadores externos que não tinham experiência xamânica. Hultkrantz, com muita propriedade, diz: "Um xamã pode parecer que está atuando em estado lúcido quando, na realidade, sua mente está ocupada com visões interiores. Eu próprio testemunhei um curandeiro americano operar durante uma cura, num contexto obscuro que o leigo não poderia facilmente descobrir. E o testemunho que depois ele me deu acerca do que viu durante sua cura reforçou o fato de que ele estivera em transe leve. Num recuado e crítico ponto de sua vida, antes de se dar ao xamanismo, o xamã pode ter entrado nesse estado alterado de consciência muito profundamente, embora haja muitas exceções culturais e individuais. Às vezes, tal experiência ocorre numa busca intencional de visão para obter o poder de um espírito guardião. Outras vezes, isso ocorre na crise de uma doença grave, como no caso dos índios norte e sul-americanos, bem como na Sibéria nativa. Tal experiência reveladora, radicalmente profunda, muitas vezes encoraja a pessoa a se tornar xamã. A experiência psicodélica que eu próprio tive entre os índios Conibo, em 1961, é um exemplo pessoal. A palavra "transe" será quase sempre evitada aqui, porque as concepções culturais que temos no Ocidente quanto a essa palavra, muitas vezes levam consigo a implicação de que se trata de um estado não consciente.

Reinhard também evita o uso do termo "transe", observando:


"... o que realmente estamos tentando estabelecer é que o xamã se encontra

num estado psíquico incomum que, em alguns casos, não significa

a perda de consciência, mas um estado alterado de consciência."


[Trecho Extraido do Livro o Caminho do Xamã – Michael Harner]

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